Ela esperou!!

Ela nasceu num dia comum, numa noite sem lua onde as ondas eram feitas de brilhantes. Chorou sentido quando o ar tocou seus pulmões pela primeira vez, foi de dor, de fome e esperou pela primeira mamada, pelo primeiro banho, primeiro carinho, esperou os sons sem sentidos virarem palavras, o equilíbrio das passadas, o apagar das primeiras velinhas.
Ela sonhou com a escola, os amigos que faria, as historias incríveis e brincadeiras sem fim, sonhou com fadas professoras, músicos encantados e tempos de alegrias, sonhou.
Esperou sentada atrás de uma porta perdida, protegida dos insultos despropositados e os severos castigos, com lagrimas sentidas.
O  tempo passou e ela pacientemente esperou as férias de verão, as primeiras confidencias, dormir longe dos pais, explorar a rua, a introdução da matemática, as mudanças nada sutil do seu corpo, seu primeiro sutiã e esperou virar mulher.
Acordada ela sonhou com seu vizinho, olhares delatores, declarações ao pé do ouvido, sonhou acariciar os doces e perfeitos lábios deles, sentir o calor emanado pela aproximação dos corpos ardente de prazer, uma corrente elétrica percorrendo seu ser, sonhou que o tempo parou e em frente da sua casa deu seu primeiro beijo.
Esperou numa noite qualquer, em uma festa que não se lembra onde dançava com rapaz de expressão inexistente eis que de repente quando menos espera um  beijo roubado, meio desengonçado, com um gosto ruim.
Esperou as festas sem convites, a primeira bebedeira, a segunda, a terceira até perder as contas de quantas vezes acordou numa cama desconhecida, as viagens com os amigos, os carnavais no Rio, esperou entrar no colegial e a noites sem dormir estudando para o vestibular.
Sonhou estudar fora, quem sabe Paris ou New York, fazer a faculdade dos sonhos, aprender sobre a vida, de onde a gente veio para onde vamos, estudar sobre o corpo, seu e dos outros, jantares intermináveis e agenda lotada, sonhou com viagens ao campo ou a praia, ir no teatro, fazer teatro, cantar no parque.
Esperou numa mesa escura abarrotada de documentos para ser autenticado, em almoços solitários num restaurante chinfrim, esperou no ônibus lotado, no caminho de ir e vir o cheiro azedo de suor, a mão solta do outro.
Ela esperou a rotina, mudanças de casa sem empregos, empregos chatos sem casa, as sextas feiras esperançosas, os sábados de prazer e o domingos enfadonhos, o carro não tão novo, ele quebrado, roubado, ele zero, ela esperou.
Sonhou com casamento, um homem bonito, um homem feio, um homem, sonhou casar na igreja, sonhou com passeios no parque, com uma casa de jardins repleto de rosas, a frase “Eu te amo” acalentando suas noites de espera, provavelmente alguma viagem de trabalho, seus filhos indo para escola, brincando com o cachorro, aniversários de casamento, jantares especiais.
Esperou as rugas aparecerem, promessas perdidas no ar, seu coração se partir e se curar até só sobrarem cicatrizes, esperou tantas chuvas de verões que não sabe nem mais contar, a rotina da solidão.
Sentada atrás de um guichê qualquer banco, esperou as estações passarem, a mudança das politicas econômicas, esperou a poupança, férias trabalhadas, esperou a casa própria, a plástica na esperança de segurar a juventude perdida
Sonhou com um grupo de terceira idade, viagens pelo Brasil, bailes com roda de samba, com bingo depois da missa no domingo, chás da tarde, clube de leituras, sonhou passear com netos que não teve, ensinar a sabedoria da vida, aproveitar os dias ociosos com outros, aprender a fazer tricô, falar japonês.
Acordou cansada foi para o parque e esperou, sozinha, a vida passar, vendo as crianças brincando de segunda a domingo, contando quantos passos dava até o mercado, variava sempre numa margem de dez, cumprimentando o novo caixa de algum banco.
Ela morreu num dia de chuva comum, sentada num banco qualquer, esperando seu dia chegar. 

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